Se fé é acreditar numa verdade ou algo sólido capaz de sustentar a sua confiança e segurança, é preciso repensar esta definição, pois as verdades podem ser muitas ou mudar e a solidez talvez não possa ser encontrada em nós mesmos, já que somos um terreno mutável, flexível, aberto. Pode-se pensar a fé como a crença na própria capacidade de tocar e ser tocado.
Perante um caso complicado o/a psicólogo/a inicialmente pode ser tocado pelos sofrimentos do/a seu/sua paciente, sentir o que é estar envolvido com as necessidades e ansiedades de alguém e perceber-se aflito e frustrado porque os seus conhecimentos científicos não são suficientes para atender, de imediato, o apelo do seu paciente. Perante esta afirmação de Forghieri, alguns pontos merecem algum destaque, pois sustentam uma grande parte das ilusões do psicoterapeuta: o conhecimento científico é suficiente; e tratamentos rápidos e eficazes.
O conhecimento científico, segundo Forghieri1, pode dar ao terapeuta alguma segurança para impedir que o paciente o “contamine” com os seus sintomas, pelo distanciamento que se insere entre eles. Já Boris2, enfatiza que o psicoterapeuta em inicio de carreira pode correr o risco de utilizar a teoria como uma defesa contra as suas próprias dúvidas, adotando uma atitude formal, intelectual ou perfeccionista.
Os conhecimentos técnicos contribuem para que o/a terapeuta não entre em pânico perante um problema de ansiedade, embora caso tenha dificuldades em acreditar em sí própria e não transmita essa segurança ao paciente, o tratamento não tem eficácia.
Se o homem é um ser aberto à evolução, e constrói o seu ser dia a dia com as suas experiencias, não seria possível confinar a sua existência aos conhecimentos teóricos. Então, o que seria um conhecimento suficiente? Ou melhor, suficiente o bastante para compreender a priori qualquer dor e sofrimento? Para certificar que as nossas atitudes e ações sejam eficazes na “salvação” do outro? Se esta segurança se fundamentasse apenas nos conceitos teóricos, não seria antes porque ela se sustenta na cegueira diante das particularidades humanas, que provocam lacunas nas grandes generalizações?
A ciência psicológica é necessária, mas é preciso cuidar para que ela não minimize a sua sensibilidade, tornando-lhe alheio ao apelo do paciente. É exigido do terapeuta sair deste lugar de superioridade conquistado pela ciência, como afirma Forghieri1, e colocar-se ao lado, próximo àquele que o/a procura. Deixar o conhecimento teórico como fundo e colocar-se com o primordial, a sua humanidade. Para se encontrar com o paciente é preciso que a teoria não se coloque à sua frente, como obstáculo entre eles, mas que ela esteja assimilada, fazendo parte de seu modo de ser, pensar e sentir.
Para Boris, a literatura teórica é um ponto de apoio e de referência ao psicoterapeuta, mas não basta por si mesma, devendo sempre ser adotada com flexibilidade, fundamentando e sendo fundamentada pela prática profissional, pelas experiências pessoais, pela supervisão e pela psicoterapia do próprio psicoterapeuta. São as atitudes e posturas do psicoterapeuta que transformam esta teoria em algo vivo, sendo estas atitudes a sua fé, confiança, empatia e respeito.
Outra reflexão anteriormente proposta é sobre o anseio do psicoterapeuta em PODER atender de imediato o apelo de seu paciente. Nas variadas situações o paciente ainda nem se mostrou, não revelou qual é realmente o seu apelo, a sua angústia, entretanto, o/a terapeuta já está a interagir com ele de maneira “virtual”, imaginando o seu sofrimento, para então se antecipar e encontrar algo que lhe assegure um bom atendimento, correspondendo assim a idealizações do paciente e as suas próprias auto-idealizações.
Segundo Forghieri1, a psicoterapia é um processo interpessoal, que requer a presença genuína do psicólogo, como instrumento, como colaborador, mas não como único autor da arte que se desenrola nesta relação. Sendo co-autor, como sustentar a fé no poder de curar alguém, de retirá-lo do sofrimento, de libertá-lo das amarras que o prendem? Sem um conhecimento capaz de assegurar a sua infalibilidade e sem a ilusão do seu poder curativo ou libertador, a fé do psicoterapeuta só encontra um repouso, um lugar, em si mesmo, na sua humanidade, as suas fragilidades e impotências. Como afirma Ribeiro (1986 apud BORIS, 2008), o psicoterapeuta não é um deus omnipotente, é um ser consciente das suas fragilidades e potencialidades.
Ter fé é conviver com a sua impotência, com a sua co-autoria, a sua plena dependência do outro que está a sua frente. Ter fé é saber caminhar ao lado, acompanhar os seus passos e quedas, sem a pressa de colocar-se à frente como aquele que já conhece o caminho, mas ser presente, ajudá-lo a refletir sobre as escolhas realizadas e evitadas, sobre as possibilidades que se despontam no seu horizonte, acreditando que permitir que ele dê os seus próprios passos é o melhor que tem a oferecer.
Como afirma Moreira (2001 apud BORIS, 2008), no momento da sessão o psicólogo estará só, apesar de estar acompanhado de sua bagagem teórica e vivências pessoais, mas contará somente consigo mesmo, com mais ninguém, tendo a sua percepção sensorial para apreender a realidade emocional daquele que está à sua frente. Assim, a sua fé não pode estar fora de si, pois neste momento também ela o abandonaria. Neste instante não há como se perder nas teorias ou devagar procurando lembranças ou conhecimentos que o protejam. Se assim o fizesse não estaria presente, e não poderia apreender o fenômeno da relação terapêutica, no momento em que este se mostra.
É preciso que o/a psicoterapeuta esteja atendo para perceber o paciente na sua plenitude, nos seus gestos, falas, silêncios, para apreender os sentimentos ali envolvidos e, como diz Angerami-camon, disponibilizá-los para uma reflexão abrangente e libertadora. É necessário confiar em si mesmo, em nas sua capacidade de estar presente, de perceber o outro e a si mesmo, de apreender os sentimentos que se descortinam no seu relato, e assim sentir-se seguro para apresentar a ele reflexões que possam abrir o seu campo perceptivo e ampliar as suas possibilidades existenciais.
Segundo Forghieri1, o processo terapêutico divide-se em dois momentos complementares: o envolvimento existencial, em que predomina a sensibilidade do/a terapeuta; e o distanciamento reflexivo, no qual prevalece a sua racionalidade. Nesta dualidade se o/a psicoterapeuta não se aprofundar no mergulho, talvez não possa captar todos os elementos desvelados na relação e a sua reflexão pode se tornar vazia de sentido, distante da realidade do paciente.
Por isso, é preciso dar-se na relação e confiar no que foi apreendido, para que neste distanciamento seja possível pensar nas intervenções. O entrelaçamento destes dois momentos pode ser percebido pelo/a psicoterapeuta quando este mergulha, mas na sua humanidade permanece sustentado pelas suas preocupações, não consegue aprofundar-se com o paciente no seu universo e sente dificuldade para apreender e devolver a este intervenção capaz de fazê-lo refletir.
Por outro lado, se a percepção é o principal instrumento do psicoterapeuta, é também a sua limitação, e de duas maneiras relevantes: a “não-neutralidade” da sua apreensão; e a possibilidade de se perceber apenas a face que se mostra.
O/A psicoterapeuta deve estar atento/a ao fenómeno de forma plena, apreendendo o paciente e também as suas próprias reações diante deste. Ciente de que não existe neutralidade, que a sua visão estará sempre afetada pelas suas ideologias, valores, história de vida, precisa conhecer-se e cuidar para não fazer uso de intervenções distantes da realidade do próprio paciente. Para Merleau-Ponty, (1999 apud ANGERAMI-CAMON, 2005), ver é entrar num universo de seres que se mostram, é vir habitá-lo e dali apreender todas as coisas segundo a face que elas voltam para ele. E é desta perspectiva que todo o trabalho do psicoterapeuta se desenvolve, na importante limitação de apreender somente a face que é mostrada pelo/a paciente.
Percebe-se então que todo o trabalho do/a psicoterapeuta tem como alicerce o seu próprio ser, as suas capacidades, vivências, humanidade, fragilidades e limitações.
Então, se fé é acreditar numa verdade ou algo sólido capaz de sustentar a sua confiança e segurança, é preciso repensar esta definição, pois as verdades podem ser muitas ou mudar e a solidez talvez não possa ser encontrada em nós mesmos, já que somos um terreno mutável, flexível, aberto. Pode-se pensar a fé como a crença na própria capacidade de tocar e ser tocado.
E assim relata Guedes (1985 apud BORIS, 2008), "ser terapeuta é um privilégio. [...] [Sua]... arte é 'tocar' as pessoas. 'Tocar' pela palavra, gesto, afeto, expressão, olhar, movimentos, etc, nos seus pontos sensíveis, adormecidos, cristalizados, encantados. Eu consigo 'tocar' quando fui ou estou sendo tocado por essa mesma pessoa" (Guedes, 1985: 15 apud BORIS, 2008).
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